Homenagem dos Filhos ao Prof. J. T. Freire
O VELHO JEQUITIBA
Uma história de sucesso bem contada pode inspirar muita gente. Alguns de nós somos movidos pelo exemplo de vida dos outros, para o bem ou para o mal. A influência do meio tem um papel chave na formação do indivíduo, num sentido bastante amplo que inclui profissão, carreira e projeções. É mais ou menos como esticar o ditado popular "Filho de peixe, peixinho é" para todos os lados, generalizando, estendendo-lhe o sentido. No fundo, no fundo, a vida é feita de escolhas, o tal do livre-arbítrio parece ser uma relação de custo-benefício entre a liberdade total e as amarras do destino. O preço da opção é arcar com as consequências dos caminhos escolhidos. O que acontece nem sempre é o que a gente quer, driblar a tal da aleatoriedade não é para qualquer um, nem todo mundo nasce com a ginga do Garrincha para se esquivar, com magia, das garras do adversário. Alguns conseguem.
Um exemplo disso tudo, ou de parte dele, é a história aqui contada. No início da década de quarenta, nasceu em berço humilde o menino José. O interior do Mato Grosso, onde nasceu José, era, naquela época, um Brasil bem peculiar, muito desgarrado da faixa litorânea onde tudo acontecia. Por lá, a dinâmica era outra, o ritmo também, parecia haver uma escala de tempo diferente dando o tom da vida no interior do interior. Filho de um pequeno comerciante, dono de um pequeno botequim na única rua da pequena cidade, o franzino José logo mostrou que seria diferente. Aos dez anos de idade, já trabalhava no comércio do pai, tendo o primeiro contato com o universo dos números que mais tarde faria dele alguém muito especial. O piá era osso duro, não vendia fiado! Somente aos onze anos de idade ele foi formalmente alfabetizado, na pequena escola da pequena cidade. Na verdade, autodidata, José já sabia ler e escrever há tempos, mas precisava do certificado para seguir os estudos. Tudo era feito assim, uma vez, várias vezes. C'etait comme ça.
Pois bem, sem mais prolegômenos, indo direto ao ponto, foi nos estudos que surgiu o encantamento. Fascinado com o conhecimento, da matemática à geografia, o menino José logo se destacou como aluno brilhante na escola, em pouco tempo, a cidade ficou pequena demais para ele. Ainda muito menino, sozinho, partiu de carona em um caminhão, por estradas de terra batida, com destino à Campo Grande, hoje a capital do Mato Grosso do Sul. Mas não naquela época.
–Seja forte como um jequitibá!
Conselho do pai, o respeitado senhor Joaquim, a analogia com a imponente árvore de tronco reto entrou para nunca mais sair da história de José. Foi sempre primeiro aluno da turma, os anos passaram, ele logo concluiu os estudos no Colégio Estadual Campograndense, e foi a vez de Campo Grande ficar pequena demais. Chegava a hora de partir de novo, não havia universidades no estado, a próxima parada tinha que ser a Cidade Maravilhosa, Rio de Janeiro. Só que não havia dinheiro, a família não tinha recursos mínimos para banca-lo, os anos sessenta começariam com o jovem José indo para Três Corações, MG, aprovado na Escola de Sargentos das Armas do exército brasileiro. Tinha que ser assim. Sozinho de novo, só que dessa vez, de trem, José partiu para Minas Gerais. O frio no estômago doía.
– Nunca busque uma órbita cheia de pessoas, mas sim, a qualidade de quem você atrai, lembre-se, seja forte como um jequitibá!
Disse o pai. Em Três Corações, formou-se sargento, com todos os méritos de um aluno brilhante. Terminado o curso, um ano depois, optou por servir no Rio de Janeiro, ciente de que lá cursaria uma universidade pública. Dito e feito, no ano de sessenta e quatro, em meio à efervescência que se lê nos livros de história, começou o curso de Física na renomada Universidade Federal do Rio de Janeiro, inicialmente, em sua sede na Praia Vermelha, ao lado da Urca. Curiosamente, o início das aulas seria em primeiro de abril, não é mentira, as ruas da cidade estavam verde- oliva, havia tanques por todas as partes. The rest is history. Não houve aulas nesse dia.
Abrindo um parênteses fundamental dentro dessa narrativa, que tem tudo a ver com o que é contado, entre o início e o término do curso de Física, nesse ínterim, José conheceu uma bela jovem carioca, Luzia era a moça mais linda da rua onde morava. Foi mais ou menos assim, ele servia na Vila Militar, a jovem estudava numa escola lá por perto e os flertes aconteciam no ponto de ônibus. A conquista não foi fácil, verdade seja dita, mas para quem tinha a força do jequitibá, desistir não era uma opção. A cada investida, a jovem resistia:
– Não me caso com militar!
Não se casou mesmo. No dia do casamento, vinte e um de dezembro de sessenta e oito, a jovem noiva de dezoito anos subiu ao altar para se casar com o jovem professor do curso de agronomia da UNESP de Jabuticabal. Formado no ano anterior, já civil, José seguiu pela estrada que o levaria até onde ele queria. A vida acadêmica.
Por falar nisso, seguir uma trajetória retilínea entre A e B era impossível, não tinha como. Da UNESP de Jabuticabal ele foi para a UNESP de Araraquara, depois, para a UNESP de Rio Claro, sempre se qualificando profissionalmente. Pulou de auxiliar de ensino para professor assistente, de assistente para adjunto, até trocar a estadual pela carreira na federal. No final dos anos setenta, já com o título e, acima de tudo, o nível de doutor, foi para o novíssimo DEQ/UFSCar, em São Carlos. Ufa! Terminava uma história, começava outra. De lá para cá, tornou-se um acadêmico respeitado, ganhou importantes projetos de pesquisa, formou muita gente, orientou muitos mestres e doutores, montou um laboratório de excelência reconhecido internacionalmente. O tempo passou, o jequitibá envelheceu, em noventa e um, despediu-se do pai, o velho Joaquim partiu sereno, deixando por aqui a biografia de um grande homem. Nas sombras do gigante da floresta, a vida continuou.
Antes da aposentadoria compulsória, em dois mil e doze, José recebeu o título de professor Emérito da universidade, uma honraria concedida para poucos. Muito poucos. Seguiu trabalhando por mais doze anos, com a alegria de um menino e a mesma empolgação de sempre. Em dois mil e quatorze, foi condecorado, em Lyon, na França, com uma medalha de honra ao mérito, por suas contribuições na pesquisa em secagem industrial. Disse em seu discurso, “se não fosse a força do jequitibá, eu ainda estaria atrás de um balcão de bar, no interior do Mato Grosso, talvez até, vendendo fiado”. No dia dez de janeiro, José completa oitenta e dois anos, é Professor Sênior do DEQ/UFSCar, membro permanente do PPGEQ. Em fevereiro ocorrerá a defesa de doutorado de seu último orientado e, assim, José encerrará sua longínqua carreira na UFSCar. Não lhe faltou nada, sairá pela porta da frente com a mesma dignidade com que entrou por essa mesma porta pela primeira vez. Mas nesse zigue-zague todo, percorrendo uma linha bastante sinuosa, faltou dizer que na passagem do casal José e Luzia por Rio Claro, vieram os dois filhos. Por influência do meio, inspirados no sucesso da carreira do pai, os dois se tornaram professores universitários, como tinha que ser. Dois filhos, dois professores.
Com carinho ao nosso pai,
Fábio Bentes Freire (Professor no DEQ/UFSCar)
Flavio Bentes Freire (professor no DACOC/UTFPR)